O tenor alemão Jonas Kaufmann é certamente o cantor lírico mais disputado do
momento, nos palcos internacionais. Pode-se dizer que ele está com o mundo a
seus pés. Nascido na cidade de Munique em 10 de julho de 1969, Kaufmann se
apresentará pela primeira vez no Brasil no dia 10 de agosto, na Sala São
Paulo, em comemoração aos 35 anos do Mozarteum Brasileiro.
Jonas
Kaufmann cantará acompanhado do pianista Helmut Deutsch, um parceiro
artístico que foi seu professor no Conservatório de Munique. Nesta
entrevista, Kaufmann fala sobre a sintonia com Deutsch e o recital de
canções que interpretará para o público brasileiro – tipo de espetáculo que,
segundo ele, representa a realeza entre todos os gêneros do canto.
Em
tom apaixonado, Kaufmann conversa sobre sua carreira, suas predileções
musicais, revelando que estar no palco lhe proporciona um estado de completa
felicidade. Fala de ópera de forma acessível e acha que a sensibilidade por
este gênero musical começa na infância. “Eu sou um bom exemplo disso”, diz,
lembrando que ficou fascinado quando assistiu a uma ópera pela primeira vez,
aos sete anos de idade.
“A grande performance de ópera ou concerto
tem o poder de mudar a vida de uma pessoa”, afirma Jonas Kaufmann. Já
apontado como o sucessor de Placido Domingo, ele hoje leva vida frenética,
com agenda de popstar. A voz extraordinária, somada a magnetismo cênico e um
talento instintivo de ator, fazem de Kaufmann um dos mais completos artistas
da cena lírica atual.
Qual será o programa desta sua primeira
apresentação para o público brasileiro?
Jonas
Kaufmann – A primeira parte será uma coleção de canções populares
de Franz Schubert e Robert Schumann, seguidas de canções maravilhosas
escritas por Henri Duparc. Na segunda parte apresentaremos os Sonetos de
Petrarca, de Franz Liszt, e uma coleção de canções de Richard Strauss,
incluindo Heimliche Aufforderung [O Convite Secreto] e Caecilie [Cecilia].*
Você fará um recital de canto e piano em São Paulo. O que esta
apresentação tem de especial, quais os desafios e demandas deste tipo de
performance? Qual a diferença entre um recital com piano e a participação em
uma ópera?
Jonas Kaufmann – Sem querer
diminuir o valor da grande ópera, eu acho que as canções representam a
realeza entre todos os gêneros do canto. Elas exigem um toque mais delicado
do que qualquer outra disciplina vocal, mais colorido, mais nuance, mais
controle dinâmico, sutileza na interpretação da música e do texto. Ao mesmo
tempo, o cantor fica exposto o tempo todo. É somente ele e o pianista, ambos
são responsáveis por todo o evento, um não pode culpar o outro se algo sair
errado. Por outro lado, fica-se absolutamente livre de todas as outras
coisas que envolvem uma ópera. Você não precisa fazer concessões, você pode
ser sempre verdadeiro consigo mesmo. Mas, é preciso assegurar tudo, do
início ao fim. E você não conta uma história como na ópera, mas vinte e
poucas histórias, sempre mudando o clima, o humor, o estilo, a linguagem e a
expressão. Se alguém diz que o gênero do “Lied recital” [recital de canções]
é um modelo esgotado por ser muito especializado ou elitista, algo só para
conhecedores e iniciados, eu estou convencido do contrário. O recital de
canções não é somente para poucos afortunados, mas para todos os que amam
música clássica. Mesmo se você não conhecer nada sobre o histórico das
canções, você fica imediatamente tocado e sensibilizado pela música e pelas
letras. Elas criam uma atmosfera de contemplação, de escuta de sua voz
interior, de seus sentimentos e emoções.
Suas apresentações
em São Paulo serão com o pianista Helmut Deutsch, que foi seu professor na
Academia de Munique. Como é sua parceria com ele?
Jonas Kaufmann – Ter Helmut Deutsch como um parceiro constante é
uma das melhores coisas que aconteceram em minha vida profissional. Nós nos
conhecemos há quase 25 anos, ele foi um de meus professores no Conservatório
de Munique. Desde 2001 realizamos recitais juntos e nunca caímos na rotina.
Mesmo quando estamos em turnê, apresentando o mesmo programa em dez cidades,
a performance nunca é a mesma. Tentamos manter as músicas vivas,
redescobrindo-as toda vez que as apresentamos. Isto é maravilhoso, algo que
somente se consegue em determinada circunstância da música de câmara, quando
dois músicos ouvem atentamente um ao outro, sendo que um segue o outro, mas
deixando cada um manter sua espontaneidade.
Costuma-se dizer
– e você mesmo já afirmou – que a década dos 40 anos é uma época-chave para
um tenor. Você está com 47 anos. O que este momento de sua carreira
representa para você? Quais são os projetos mais especiais deste momento?
Jonas Kaufmann – Na vida de um cantor há três linhas
cronológicas de desenvolvimento: a do corpo, a da técnica vocal e a
artística – a qual inclui experiência humana e percepção artística. Eu penso
que, para um cantor, os 40 representam a década em que tudo vem junto. Você
tem experiência suficiente – com relação à vida, música, estilo, linguagens
etc. A voz – com sorte! – está em pleno florescimento e seu corpo ainda é
forte o suficiente para dar suporte à voz. Para um tenor, este é o estado em
que se pode assumir os papéis mais exigentes. Um deles é Otello, claro.
Depois de gravar monólogos de Otello para meu álbum Verdi e já ter cantado
aqueles duetos de amor maravilhosos em concertos, eu estava muito tentado a
cantar a obra inteira. Mas, eu disse para mim mesmo: cuidado, esta música
deve ser conduzida de forma muito dramática, você perderá o controle
emocional, melhor esperar alguns anos. Foi o que fiz. Pensei que era a
decisão certa. Agora, estou aguardando com grande expectativa meu primeiro
Otello, em junho de 2017, na Royal Opera House de Londres.
Verdi, Wagner e Puccini são autores muito importantes em seu repertório e
você é considerado intérprete de excelência destes compositores. Fale por
favor sobre estes autores, o que a obra deles exige e proporciona para um
intérprete. Por que eles são tão importantes para você?
Jonas Kaufmann – Em 2013, quando o mundo da música celebrou
os aniversários de Verdi e Wagner, me perguntaram muitas vezes qual dos dois
eu preferia. Eu realmente não conseguia dizer. Durante as séries Parsifal,
em Nova York, eu me preparei para o papel de Manrico, do Il Trovatore de
Verdi, e fiquei tão excitado com a música que eu queria cantar somente
Verdi. Daí veio a performance seguinte, de Parsifal, de Wagner, no
Metropolitan Opera House: durante cinco horas eu ficava mergulhado no cosmos
desta música, esquecendo cada coisa e cada um à minha volta e acreditei que
eu tinha então encontrado o maior e melhor dos compositores. Isto vai e
volta, é uma montanha russa emocional que dura semanas.
Sempre se diz
que Verdi era o compositor do povo e Wagner dos intelectuais. Isto pode
estar correto na medida em que muitas melodias de Verdi são bem mais
populares hoje do que as de Wagner. Todo mundo conhece La Donna è móbile, já
foi usada até em propaganda de pizza na televisão. Se todos dizem que Wagner
é provavelmente mais para os intelectuais, eu tenho minhas dúvidas. Para a
maioria das pessoas que conheço, o amor pela música de Wagner vem do
coração, não da mente. A música de Wagner muitas vezes funciona como uma
droga e portanto são capazes de atingir as massas tanto quanto a música de
Verdi. A grande diferença entre eles? Talvez suas atitudes com relação ao
público e à política. Quanto ao compromisso social e com a humanidade eu
obviamente simpatizo mais com Verdi. Mas, como se diz no Capriccio de
Richard Strauss: “Você tem que separar o homem da obra”.
Como Verdi e
Wagner, Puccini exige uma escala completa de recursos, com relação à voz,
mente, emoção e fisicalidade. A extensão vocal vai da frase lírica mais
delicada (como o dueto de amor entre Rodolfo e Mimi de La Bohème) às cenas
mais dramáticas, como Guardate, pazzo non son, de Manon Lescaut e Or son sei
mesi, de La Fanciulla del West. Puccini é um dos mais importantes
compositores de minha vida profissional, simplesmente porque ele oferece
algumas das maiores obras escritas na história da ópera. Sua música é pura
emoção. E se o público diz que suas partituras são “música de filme”, é um
grande elogio: Puccini estava além de seu tempo, ele morreu alguns anos
antes do surgimento do cinema falado, mas já compunha imagens em movimento.
Como estimular a ópera entre as novas gerações? O filme “Jonas
Kaufmann – An Evening with Puccini”, exibido mundialmente nos cinemas, é uma
forma de popularizar a ópera?
Jonas Kaufmann
– Sim, acho que levar ópera e concertos clássicos para o cinema é uma ideia
muito boa, uma vez que ainda há muita gente interessada em ópera mas não vai
a um teatro de ópera porque tem a sensação de que é somente para uma elite.
No cinema, estas pessoas sentem-se mais confortáveis, não há necessidade de
se preocupar se está bem vestido ou algo assim – e podem se envolver com a
atmosfera interna do teatro em uma performance ao vivo, com todos os seus
riscos e surpresas. Mas no cinema eles estarão muito mais próximos da ação
no palco do que qualquer espectador da casa de ópera. Algumas pessoas são
contra essas visões muito próximas, ou close-ups que o cinema proporciona,
porque acham que a arte da ópera implica em uma certa distância entre o
palco e a plateia. Mas, para mim, um bom close-up intensifica a situação
dramática, assim como a expressão musical. E se é feito tão bem quanto fazem
no Metropolitan Opera House de Nova York, é realmente uma grande
experiência.
Sabe-se que você acha importante estimular ópera
entre crianças. Como é possível sensibilizá-las?
Jonas Kaufmann – Levar música clássica e ópera para crianças não é
uma questão isolada de educação musical. Estar na mídia social, TV, rádio,
cinema, não importa onde – devemos usar toda e qualquer oportunidade para
levar a expressão musical até elas. Na idade de cinco, seis, até onze, doze
anos, a maioria das crianças mantém a mente muito aberta, completamente
livre de preconceitos. Afirmações como “Ah, opera é chata” normalmente
aparecem durante a puberdade. Antes destes anos “difíceis” da adolescência,
a maioria das crianças é receptiva para música clássica e ópera. Esta é uma
das razões por que estou envolvido no Programa Campus para Crianças e
Jovens, do Teatro da Ópera da Bavária, em Munique. Para uma criança, a
primeira impressão da ópera pode ser tão forte que pode levá-la a uma paixão
de vida inteira. Eu sou um bom exemplo disso: em uma tarde de domingo eu
participei de uma performance de família de Madame Butterfly, no Teatro da
Ópera da Bavária, na minha cidade natal, Munique. Eu tinha sete anos de
idade e fiquei totalmente fascinado – foi incrível, eu ainda posso lembrar o
quanto foi bonito e emocionante. O enorme saguão de entrada, o veludo
vermelho que recobria as cadeiras, o cenário, figurinos, a música e então os
aplausos. E subitamente a dama que tinha acabado de morrer estava em pé, em
frente às cortinas, retornando à vida, embora aquela trágica dama Cio-Cio
tivesse matado a si mesma, pouco antes, diante de meus olhos. Esta foi a
primeira vez que eu experimentei este mágico mundo que nós chamamos de
“ópera”. Foi um dos momentos-chaves de minha vida musical.
Fale sobre a condição única e especial da performance ao vivo, considerando
que vivemos em um mundo cada vez mais virtual. O que é estar em cena, o que
você sente quando está no palco, cantando ao vivo para a plateia?
Jonas Kaufmann – Você já deu a resposta: nós somos
abençoados pelas possibilidades da tecnologia da era moderna – gravações,
filmes, transmissões virtuais etc. – mas não há nada que se pareça com a
performance ao vivo. Esta é a verdade! A grande performance de ópera ou
concerto tem o poder de mudar a vida de uma pessoa.
Como você
combina as habilidades de cantar e atuar? Como você se prepara para
interpretar um personagem? Seria um processo mais instintivo?
Jonas Kaufmann – Sou definitivamente mais instintivo.
Não sigo um método especial ou uma escola. Para mim, a interpretação é uma
questão de imaginação e experiência. Claro que você não deve estar
fatalmente doente para convencer na interpretação de uma Traviata – mas você
deve ter a imaginação do que se pode sentir ao encarar a morte, o extremo
desespero a ponto de perder o controle e cometer um assassinato. Imaginação
é a palavra chave para todas as situações que você experimenta em sua vida –
e espero nunca perder esta capacidade!
A voz é seu
instrumento musical e voz e corpo compõem uma unidade singular. Você tem
algum cuidado especial para manter este equilíbrio?
Jonas Kaufmann – Considerando que o canto é um esporte de alta
performance, é preciso manter o corpo em forma, fazer exercícios básicos de
aquecimento, ioga e treinamento autógeno [técnica de relaxamento baseada na
auto-sugestão, criada pelo psiquiatra alemão Johannes Heinrich Schultz na
década de 1930].
O que seria a qualidade ou coloração escura
de sua voz? Como você a desenvolveu?
Jonas Kaufmann
– A voz humana é um instrumento que se desenvolve constantemente – ou pelo
menos é o que deve ser, quando você canta durante décadas. No meu caso,
minha voz de hoje é completamente diferente da voz de meu início de
carreira. Quando eu comecei como um profissional, eu ainda acreditava no que
tinha aprendido como estudante: ser um típico “tenor lírico alemão” – com
Tamino [personagem central da ópera A Flauta Mágica, de Mozart] e Don
Ottavio [de Don Giovanni, de Mozart] sendo o centro de meu repertório. Mas
logo eu percebi que isto não era certo para mim. Isto foi durante minha
primeira temporada em Saarbrücken [capital do Estado do Sarre, Alemanha]. Eu
fiquei doente subitamente e impossibilitado de lidar com todas aquelas
coisas que tinha de cantar. No período mais sombrio daqueles anos, eu fiquei
rouco durante uma performance de Parsifal, quando cantava a pequena parte do
quarto escudeiro! Graças a Deus, encontrei meu professor Michael Rhodes logo
em seguida, e ele me ensinou a cantar com minha própria voz, em vez de
tentar soar como um “tenor lírico alemão”. Felizmente, eu consegui superar
aquela crise rapidamente e Rhodes interferiu para que eu “resgatasse” minha
voz natural. Desde então, minha voz tornou-se mais escura e forte. Passo a
passo, eu pude cantar obras que, antes, eu apenas sonhava interpretar – como
Lohengrin e Parsifal [Verdi], Don Carlo [Verdi], Alvaro [de A Força do
Destino, de Verdi] e Des Grieux [de Manon Lescaut, de Puccini].
Além de sua estreia no Metropolitan Opera House de Nova York, em
2006, quais foram os momentos mais marcantes de sua carreira?
Jonas Kaufmann – Foi também muito marcante a minha
estreia no Teatro da Ópera de Paris, em 2010, com Werther [ópera de Jules
Massenet]. Eu era um cantor alemão interpretando o papel central de uma
ópera francesa – isto foi muito especial e você pode imaginar como fiquei
feliz com a reação entusiasmada do público. Outro caso similar, talvez ainda
mais desafiador, foi meu concerto sobre Puccini no Teatro La Scala de Milão,
em junho de 2015. A despeito de todas as mudanças no mundo da ópera, o La
Scala permanece um caso especial em muitos aspectos. E um cantor alemão
realizar um recital sobre Puccini no La Scala é um grande desafio… Claro,
antes eu já tinha cantado Tosca [também de Puccini] no La Scala e tinha
sentido que eles me aceitaram cantando o repertório italiano. Mas eu não
estava preparado para aquelas enormes ovações com o público em pé, naquela
noite. Foi um dos momentos mais felizes que eu experimentei no palco.
Sua família sempre apreciou música e isto foi importante para o
seu desenvolvimento musical. Mas o que realmente determinou sua escolha pelo
canto lírico?
Jonas Kaufmann – Apesar do
entusiasmo de minha família pela música clássica e de terem me encorajado
para o canto (eu tinha 17 anos quando comecei em um coro do
Gärtnerplatztheater de Munique), meus pais queriam que eu aprendesse algo
mais substancial, alguma coisa que mais tarde eu pudesse usar para conseguir
um trabalho como o de meu pai, que tinha um salário digno em uma empresa de
seguros e assim podia sustentar nossa família. Eu queria uma família também
e ficou muito claro para mim que o canto profissional seria um ofício
arriscado, especialmente porque um cantor depende de sua saúde e o mínimo
resfriado pode torná-lo imprestável para trabalhar. Eu me mantive como um
estudante de matemática durante alguns semestres, mas pensar que eu poderia
ser um teórico ou um funcionário de escritório, pesou cada vez mais. Tentei
então uma audição para um encaixe como estudante vocal e fui aceito.
Precisei de uma enorme coragem para tomar a fatídica decisão de dizer adeus
à vida segura como um matemático. E assim, no verão de 1989, eu comecei a
treinar para me tornar um cantor de ópera e concerto na Academia de Música e
Teatro de Munique.
Além de São Paulo, você se apresentará em
Lima (Peru), Buenos Aires (Argentina) e Santiago (Chile). Quais suas
expectativas quanto a esta sua primeira temporada na América do Sul?
Jonas Kaufmann – Eu nunca estive na América do Sul e
aguardo com ansiedade e alegria esta temporada, não somente pela experiência
profissional, mas também por vários motivos, como a oportunidade de conhecer
o povo, a cultura, as cidades destes locais.
*Programa sujeito a
alterações. |